A Natureza dos Contratos Turn Key e o Conflito de Competência entre os Entes Tributantes (ICMS x ISS)
por Andrey Biagini Brazão Bartkevicius
Associado da Área Tributária do Escritório Pinheiro Neto Advogados
Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
É cada vez mais comum nos dias atuais a celebração de contratos de empreitada na forma de turn key. Conforme se depreende da tradução livre do termo (“chave na mão”), nesse tipo de contrato a empreiteira recebe um valor fechado para entregar a obra pronta. Ou seja, o interessado contrata determinada empresa para a realização de um projeto do início ao fim, a qual se responsabiliza por todas as etapas desse empreendimento.
Esse tipo de contratação tem sido usual nas construções de grande porte, pois muitas vezes é do interesse do contratante, do ponto organizacional/operacional, concentrar o empreendimento em torno de uma única empresa (ou de um Consórcio). Do lado da empresa contratada, a elaboração do empreendimento como um todo permite identificar melhor as necessidades do seu cliente, além de criar um laço de exclusividade, interessante do ponto de vista comercial.
Para se demonstrar a importância do tema, duas das obras mais importantes para a abertura da Copa do Mundo FIFA no Brasil em 2014 foram contratadas no regime de turn key: as obras da Linha Amarela do Metrô da cidade de São Paulo e a construção do estádio que receberá a cerimônia e o jogo de abertura[1].
Esses contratos são parte de um novo cenário empresarial, extremamente complexo sob o ponto de vista financeiro e operacional, sendo inevitável que surjam conflitos de competência entre os entes tributantes. Esse conflito se dá principalmente entre os Municípios – responsáveis pela arrecadação do ISS – e os Estados – responsáveis pela arrecadação do ICMS, já que nesses contratos há tanto a prestação de serviços quanto o “fornecimento” de equipamentos.
NATUREZA DOS CONTRATOS TURN KEY: CONFLITO ICMS x ISS
Nos contratos turn key, a empresa contratada (empreiteira) é responsável por uma série de obrigações, envolvendo não só a elaboração do projeto, mas também o fornecimento e a instalação do material necessário para o empreendimento.
Analisemos o caso do estádio de futebol mencionado. Em relação aos serviços “puros” – como exemplos: a atividade dos engenheiros eletricistas responsáveis pela iluminação do estádio, dos profissionais responsáveis pela terraplanagem do terreno, ou dos responsáveis pelo treinamento de funcionários – há elementos suficientes para defender a incidência do ISS. Em todos esses exemplos, nos parece claro que estamos diante de obrigações de fazer.
O conflito de competência poderia surgir, eventualmente, em relação ao fornecimento das máquinas e equipamentos necessários à instalação do sistema de iluminação e cobertura do estádio, ou à execução da terraplanagem para adequar a topografia do terreno. Isso porque, nesses casos, há o fornecimento de partes e peças essenciais à execução da obra (que não se incorporam ao empreendimento). Nessa hipótese específica, o Fisco Paulista pode entender ser devido o ICMS, com base inclusive na Resposta à Consulta nº 282/97, que diferencia os contratos turn key dos contratos de construção civil e considera esse fornecimento de mercadorias como “obrigações de dar” suficientes para a cobrança do tributo estadual[2].
O contraponto que se poderia fazer ao argumento do Fisco é o de que, nos exemplos acima citados, não há uma circulação física de mercadoria em um contexto de negócio jurídico mercantil, pressuposto material para a incidência do ICMS, conforme entende o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”)[3].Pelo contrário, haveria somente o fornecimento de materiais e bens como meros meios para atingir a finalidade do contrato celebrado turn key, que é essencialmente uma prestação de serviço (realização da obra – item 7.02. da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003).
Ademais, a questão do conflito de competência não deve ser examinada apenas sob o enfoque da relação entre contratante e empreiteira, mas também sob o enfoque da relação entre empreiteira e fornecedores. A primeira relação encerra, como visto, uma obrigação de fazer (prestação de serviço típica, sujeita ao ISS). Já a segunda operação retrata uma obrigação de dar (circulação de mercadoria, que em geral resulta na tributação pelo ICMS). Ao exigir a tributação pelo ICMS no âmbito do contrato turn key, o Fisco Estadual acaba onerando duplamente a operação e invadindo o campo de incidência do tributo municipal (ISS), o que não parece razoável admitir.
No contrato turn key, não há uma operação de venda de bens a destinatários incertos por um contribuinte habitual do ICMS. O objeto deste contrato não envolve apenas uma mera obrigação de dar. Isso porque a responsabilidade da empresa contratada envolve algo muito mais amplo do que o fornecimento de materiais (por exemplo, os relativos à cobertura e à iluminação do estádio), que é a obrigação de entregar o estádio em plena condição de uso imediato ao seu cliente.
Em síntese, há argumentos para defender a prevalência de uma obrigação de fazer, a depender do caso concreto. Obviamente, toda e qualquer conclusão passa pela análise das peculiaridades e natureza das atividades/operações previstas no contrato, cabendo ao interprete identificar o papel das máquinas e equipamentos na execução da obra para defender o afastamento do ICMS eventualmente exigido pelo Fisco estadual.
JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA
Como o tema é recente, a jurisprudência hoje existente é limitada. No âmbito administrativo, vale destaque o julgamento realizado pela 11ª Câmara Julgadora do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (“TIT”) nos autos do Processo Administrativo no. DRT 5-887918/2010. Este caso envolveu a cobrança de ICMS sobre o fornecimento de equipamentos (partes e peças) necessários à secagem do bagaço de laranjas. Entendeu o Fisco que o fornecimento desses equipamentos (geradores de gás quente, ventiladores de gás, conjuntos de dutos de ar de alimentação, etc.) teria caracterizado uma circulação de mercadorias (“obrigação de dar” a ensejar a tributação pelo ICMS), não devendo incidir o ISS.
Embora o julgamento tenha sido desfavorável ao contribuinte, o voto-vista (vencido) proferido pelo Juiz Adolpho Bergamini[4] traz interessantes reflexões sobre o tema. Segundo o julgador, “não há como não considerar que a obrigação da Recorrente é a de implementar um sistema detalhado e complexo que, em última instância, consiste no resultado físico de um serviço prestado especificamente ao seu contratante (e nos termos, requisitos e especificações lá determinados) que, por ser nitidamente uma ’obrigação de fazer’, não pode (e não deve) se submeter ao ICMS, porquanto se trata de um negócio jurídico sujeito ao ISS.”.
Na mesma linha do voto acima destacado, vale mencionar também interessante decisão proferida pelo Conselho de Recursos Fiscais do Estado da Paraíba[5]. Nesse caso, o Tribunal administrativo concluiu, por unanimidade de votos, que não poderiam compor a base de cálculo do ICMS os materiais destinados a determinadas instalações hidráulicas, justamente pelo fato de que foram destinados à execução dos serviços contratados (e não meramente adquiridos para uso/consumo).
Embora o STJ não tenha analisado um caso específico envolvendo contratos turn key, esse Tribunal Superior decidiu que as empresas de construção civil não são contribuintes do ICMS, salvo nas situações que produzam bens e com eles pratiquem atos de mercancia diferentes da sua real atividade, como a pura venda desses bens a terceiros. Por outro lado, entendeu que não incide o ICMS quando essas empresas adquirem mercadorias e as utilizam como insumos em suas obras[6]. Ou seja, o STJ considerou a prestação do serviço preponderante em relação ao fornecimento de mercadorias, pelo qual concluiu pela não incidência do ICMS.
Em um outro caso também envolvendo conflito de competência (ICMS x ISS), o STJ entendeu que só incide o ICMS na comercialização de software padronizado (o qual pode ser utilizado por todo e qualquer cliente). No entender dos Ministros, nesse caso há uma venda de mercadoria pura e simples. Por outro lado, no caso de o software ser desenvolvido de forma específica ao cliente, incide o ISS na cessão onerosa via licenciamento (já que a prestação do serviço é preponderante)[7].
CONCLUSÃO
Os precedentes acima mencionadospodem ser utilizados pelos contribuintes para defender a não incidência do ICMS nas operações envolvendo equipamentos necessários para a consecução dos contratos de empreitada na forma de turn key (“chave na mão”). Como visto, independente da existência de circulação física de matérias/equipamentos, o contrato turn key pode se reportar preponderantemente a uma obrigação de fazer (prestação de serviço), que ensejaria a incidência do ISS e não do ICMS.
Vale destacar a importância de o prestador do serviço delimitar a natureza das atividades desenvolvidas, atestando de maneira clara e objetiva nas cláusulas do contrato a prevalência de uma obrigação de fazer a ensejar a tributação pelo ISS, ainda que ocorra o “fornecimento de máquinas e equipamentos”. É importante sempre a análise pormenorizada da natureza das atividades/operações previstas no contrato para defender a não incidência do ICMS eventualmente exigido.
Em todo caso, a precaução com a celebração/formalização do contrato turn key (e com os demais documentos decorrentes do negócio jurídico) pode ser determinante para o contribuinte obter êxito em uma eventual discussão administrativa e/ou judicial sobre o tema.
[1] A natureza dos contratos dessas obras foi divulgada nos sites do UOL e da BBC Brasil que podem ser acessados nos seguintes sites da internet: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/20554/34699.shtml.shtml; e
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/10/111020_itaquerao_vizinhos_paulo_cabral_rw.shtml (últimos acessos em 14/10/2013).
[2] Resposta à Consulta n. 282/97. Íntegra disponível no seguinte site da internet: http://icmssp.cenofisco.com.br/icmssp/isp.dll/Infobase/864/2a9e/2bab/2bba?f=templates&fn=document-frame.htm&2.0 (ultimo acesso em 14/10/2013)
[3] “Súmula 166 do STJ: Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadorias de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”
[5] Acórdão nº 046/2011, disponível no seguinte site da internet:
http://legisla.receita.pb.gov.br/DECISOES/2Instancia/VOTOACORDAO/2011/Mar/ACORDAO046CRF3102009.pdf (último acesso em 14/10/2013)
[6] AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 750.255 – MG (2006/0041985-7) – REL. MIN. JOSÉ DELGADO –
DJ 17/08/2006
[7] RECURSO ESPECIAL Nº 222.001- MG (2006/0041985-7) – REL. MIN. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA –
DJ 5/09/2005