ISS – Decisão do STJ sobre Leasing (RESP 1.060.210-SC) – O precedente afeta de alguma forma o conceito de estabelecimento prestador contido na LC 116/2003?
por Leticia Brandão Tourinho Dantas
Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Jorge Amado/JusPodivm em Salvador (BA), mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutoranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora assistente no Curso de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).
No último dia 28/11/2012, a 1ª Seção do STJ concluiu o julgamento do Recurso Especial nº 1.060.2010-SC, no qual se discutia, basicamente, a definição do Município competente para cobrança do ISS incidente nas operações de leasing financeiro. No caso específico, em se tratando de operação de arrendamento mercantil de veículo, a discussão se resumiu à definição do local da prestação do serviço, se no Município onde se encontra a concessionária de veículos ou naquele onde está localizada a sede da Empresa e, por consequência, onde são desenvolvidas as atividades relativas à aprovação do financiamento.
A discussão atinente à identificação, in concreto, ao critério espacial do ISS, sem dúvidas, se revela como um dos grandes desafios dos aplicadores do direito, seja em razão do grande número de Municípios integrantes da Federação, seja em razão da variada gama de serviços tributáveis, com todas as suas peculiaridades relacionadas à forma de execução, somadas à sanha arrecadatória do Fisco e aos posicionamentos já firmados pelo STJ, muitas vezes desconsiderando o próprio enunciado normativo que, expresso em lei complementar, tem por finalidade, justamente, dirimir conflitos de competência, nos termos do art. 146, inciso I, da Constituição Federal.
Já durante a vigência do Decreto-Lei nº 406/68, em cujo art. 12, havia disposição expressa sobre o critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, como sendo, via de regra, o local “do estabelecimento prestador ou, na falta, o do domicílio do prestador” e abrindo exceção, apenas para os casos de construção civil e exploração de rodovias, o STJ teve a oportunidade de se manifestar, inúmeras vezes, tendo pacificado o entendimento no sentido de que o critério para fixação da competência do Município seria unicamente aquele onde foi concretizado o fato gerador (a efetiva prestação do serviço):
“Embargos de Divergência. ISS. Competência. Local da Prestação de Serviço. Precedentes.
Para fins de incidência do ISS – Imposto sobre serviços -, importa o local onde foi concretizado o fato gerador, como critério de fixação de competência do Município arrecadador e exigibilidade do crédito tributário, ainda que se releve o teor do art. 12, alínea a do Decreto-lei n. 406/68. Embargos rejeitados.”[1]
O fundamento constitucional do voto vencedor neste caso, conforme bem pontuado por Misabel Derzi, foi o princípio territorialidade: “baseando-se na regra constitucional da limitação territorial do âmbito de validade das normas municipais, pretensamente restrito ao local da prestação dos serviços, o Superior Tribunal de Justiça não declarou expressamente inconstitucional o citado artigo 12, mas negou-lhe vigência e aplicação.”[2]
Ademais, como conclui Misabel Derzi depois de estudo aprofundado dos precedentes que auxiliaram na construção do entendimento então pacificado pelo STJ, “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foi construída objetivando combater a fraude ou a simulação, pois grande número de contribuintes se instalava num determinado Município que atribuía alíquotas menores ao imposto, diferente do local onde prestavam seus serviços ou que efetivamente mantinham estabelecimento prestador. Além disso, o mote para o caminho da jurisprudência daquele tribunal foi tentar realizar uma redistribuição de receita do ISSQN mais equânime entre pequenos e grandes Municípios, à frente do fato de que grandes prestadores sempre buscam se instalar em Municípios de maior relevo econômico.”[3]
Ocorre que tal posicionamento do STJ, antes de estabilizar as relações jurídicas intersubjetivas, acabou por causar mais transtornos e incentivar a guerra fiscal entre os Municípios, propiciando a dupla tributação e verdadeira insegurança jurídica dos contribuintes sujeitos à incidência deste imposto..
Assim é que, desde o início, foi aclamada a edição da Lei Complementar nº 116/03, que revogou o malfadado art. 12, do Decreto-Lei nº 406/68, e trouxe uma mescla de critérios para a definição do local da prestação do serviço para fins de incidência do ISS, isto é, i) manteve o critério do estabelecimento prestador do serviço ou do domicílio (art. 3º, caput, da LC nº 116/03), mas ii) trouxe uma lista de vinte exceções em que o serviço deverá ser considerado como prestado no local em que é executado (art. 3º, incisos II a XIX, XXI e XXII, da LC nº 116/03); e, por fim iii) incluiu a substituição tributária, objetivando que o tomador dos serviços torne-se a pessoa responsável pelo pagamento do tributo (incisos I e XX, do art. 3º, da LC nº 116/03):
“Art. 3º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local: (…)”
Ainda, a despeito de tratar-se de conceito de direito privado e amplamente trabalhado pela doutrina, a fim de dirimir quaisquer dúvidas quanto ao seu conteúdo e alcance, o legislador complementar trouxe no art. 4º a definição de “estabelecimento prestador”:
“Art. 4º Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas. “
É dizer, nos termos deste artigo, pouco importa o caráter permanente ou temporário da prestação, muito menos a denominação que se dê ao local onde é desenvolvida a atividade (sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal etc). Relevante, para fins de caracterização do estabelecimento prestador, portanto, que se trate de unidade econômica do contribuinte, apta à prestação do serviço.
É dizer, o legislador complementar, para os casos em que o local da prestação do serviço é claramente identificável, dispôs expressamente que o imposto será devido no local da prestação, como é o caso daquelas atividades relacionadas nos incisos do art. 3º, da LC nº 116/03. Para os demais casos, aplica-se a regra geral, que define como critério espacial da hipótese de incidência do ISS o local do estabelecimento prestador.
Neste sentido, Susy Gomes Hoffmann:
“para[4] a gama de serviços que em que não é possível indicar, com precisão, o local da prestação de serviços, entendemos perfeitamente válida a eleição do legislador federal, ao indicar a regra segundo a qual a competência para cobrança do ISSQN seria a do Município em que o prestador de serviços está estabelecido, como no caso, por exemplo, da prestação de serviços de entrega de encomendas.”
O STJ já teve a oportunidade de se manifestar sobre o aspecto espacial do ISS posteriormente à edição da LC nº 116/03, deixando clara uma alteração substancial de posicionamento relativamente à jurisprudência formada sob a égide do Decreto-Lei nº 406/68, como se verifica do trecho do acórdão prolatado por ocasião do julgamento do REsp nº 1.117.121, julgado sob a sistemática do art. 543-C, do CPC (representativo de controvérsia). De fato, a despeito de tratar-se, no caso concreto, de serviço incluído no rol das exceções (local da prestação) – construção civil, projetos, assessoramento e gerenciamento de obra, a Min. Eliana Calmon faz importante distinção entre as regras para definição do critério espacial do ISS:
“(…) Com a edição da Lei Complementar 116/2003 houve alteração de entendimento em relação ao local de recolhimento do ISS sobre os serviços prestados, porque foi profundamente alterado o artigo 12 do Decreto-Lei nº 406/68, revogado pelo novo diploma que, atendendo à reivindicação dos contribuintes, consignou o lugar da sede da empresa como o local de recolhimento do ISS. Entretanto, em relação à construção civil abriu uma exceção para considerar, como antes, o local da prestação do serviço, como deixa claro o teor do art. 3º da Lei Complementar nº 116/2003:
(…)
Assim, a partir da LC 116/2003, temos as seguintes regras:
1ª) como regra geral, o imposto é devido no local do estabelecimento prestador, compreendendo-se como tal o local onde a empresa que é o contribuinte desenvolve a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação, contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas;
2ª) na falta de estabelecimento do prestador, no local do domicílio do prestador.
Assim, o imposto somente será devido no domicílio do prestador se no local onde o serviço for prestado não houver estabelecimento do prestador (sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação);
3ª) nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, acima transcritos, mesmo que não haja local do estabelecimento prestador, ou local do domicílio do prestador, o imposto será devido nos locais indicados nas regras de exceção.”[5]
Posteriormente, a 2ª Turma do STJ, no julgamento do REsp nº 1.160.253, teve nova oportunidade de manifestar-se sobre o tema, consolidando o entendimento no sentido de que, com a edição da LC nº 116/03, a regra geral a ser observada para fins de definição do Município competente para exigência do ISS é a do local do estabelecimento prestador. O Min. Relator Castro Meira analisou o tema com profundidade, sendo válida a transcrição do seguinte trecho do seu voto:
“(…) Como se observa, a municipalidade competente para realizar a cobrança do ISS é a do local do estabelecimento prestador dos serviços. Considera-se como tal a localidade em que há uma unidade econômica ou profissional, isto é, onde a atividade é desenvolvida, independentemente de ser formalmente considerada como sede ou filial da pessoa jurídica.
Isso significa que nem sempre a tributação será devida no local em que o serviço é prestado. O âmbito de validade territorial da lei municipal compreenderá a localidade em que estiver configurada uma organização (complexo de bens) necessária ao exercício da atividade empresarial ou profissional.
Assim, por exemplo, se uma sociedade empresária estabelecida num determinado município, presta o serviço uma única vez em outro município, o ISS é devido no local em que sediada. No entanto, se essa mesma sociedade aluga uma sala comercial nesse outro município, contrata funcionários e lá passa a exercer a atividade econômica, a tributação, aí sim, será devida na localidade em que prestado o serviço.
Essa mesma opinião é comungada por José Eduardo Soares de Melo que, acompanhando o entendimento de Misabel Abreu Machado Derzi, assim conclui:
Justificável a assertiva de que o estabelecimento prestador não será um singelo depósito de materiais ou a existência de um imóvel, sendo necessária a organização, unificada em uma unidade econômica indispensável à prestação do serviço. O local onde se situar tal organização (de fato, não por ficção formal ou declaração de fachada do contribuinte, atrairá o âmbito de validade territorial da lei municipal respectiva. (ISS – Aspectos Teóricos e Práticos. 5a. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 195).”[6]
Recentemente, a questão foi novamente submetida ao crivo do STJ, no julgamento do REsp 1.060.201, concluído no dia 28/11/2012, tendo a 1ª Seção deste Tribunal Superior decidido que o Município competente para a cobrança do ISSQN incidente nas operações de arrendamento mercantil (leasing financeiro de veículo) é aquele onde se encontra unidade econômica e funcional da arrendadora (estabelecendo prestador), e não o local onde estabelecida a concessionária de veículos
A despeito de não ter sido ainda formalizado o acórdão, é importante registrar que o ponto primordial analisado pelos Ministros participantes do julgamento, mais que a fixação do estabelecimento prestador como o aspecto espacial da hipótese de incidência do ISSQN, foi a própria natureza dos serviços prestados relativamente às operações de arrendamento mercantil, na modalidade de leasing financeiro, para concluir que, neste caso específico, os serviços são prestados pela arrendadora, devendo ser levado em conta, então, o local do seu estabelecimento prestador (sede).
Neste sentido, o pronunciamento do Min. Herman Benjamim, que deu provimento ao Recurso Especial, afirmando que o ISSQN deve ser exigido no local do estabelecimento prestador, o que, no caso específico das operações de “leasing”, é a sede da pessoa jurídica arrendadora, quer sob a égide do Decreto-Lei nº 406/68, quer sob a vigência da Lei Complementar nº 116/03. Segundo o Ministro Herman Benjamin, nas operações de “leasing”, há a prestação de serviços de financiamento (atividade fim), serviços esses que são praticados nas sedes das pessoas jurídicas arrendadoras, isto é, aquelas que efetivamente concedem os créditos. Com isso, pouco importa se a captação dos clientes, o registro do contrato ou a entrega dos bens ocorre em Municípios distintos daquele onde está a sede da arrendadora.
Diante disso, entendemos que o posicionamento do STJ no julgamento do REsp 1.060.210/SC, não alterou em nada o conceito de estabelecimento prestador fixado pela LC nº 116/03, nem os critérios para fixação da competência municipal relativamente à exigência do ISSQN, o que já havia sido feito no julgamento do REsp nº 1.117.121, sob a sistemática do art. 543-C, do CPC e reiterado no julgamento do REsp nº 1.160.253, conforme exposto brevemente neste artigo.
A relevância deste julgamento, ocorrido posteriormente à decisão do STF quanto à constitucionalidade da incidência do ISS sobre as operações de arrendamento mercantil (RE 592.905), foi a definição do objeto desta prestação de serviço, que consiste na análise do crédito e autorização para o financiamento de arrendamento mercantil (e não a venda do bem), o que é feito, não pela concessionária de veículos, mas pela instituição financeira, sendo competente o Município onde essa atividade é desenvolvida.
[1] Embargos de divergência no REsp 130.792/CE, Rel. Min. Ari Pargendler. Rel. p acórdão Min. Nancy Andrigui, DJ 12/06/2000.
[2] DERZI, Misabel de Abreu Machado. O aspecto espacial do imposto municipal sobre serviços de qualquer natureza. ISS na LC 116/03 e na Constituição. Barueri,SP: Manole, 2004.
[3] Op. Cit., p. 58.
[4] HOFFMANN, Susy Gomes. O Imposto Sobre Serviços de Qualque r Natureza, in Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Coord. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 519.
[5] STJ, REsp 1.117.121, 1ª Seção, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 29/10/2009.
[6] STJ, REsp 1.160.253, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe 19/08/2010.