A tributação das controladas e coligadas no exterior à luz dos tratados para evitar a dupla tributação – tendências face à jurisprudência recente
André Martins de Andrade
Advogado
Mestre (USP) e Doutor (UERJ) em Direito
Inaugurada com a edição do art. 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/01, a década de perplexidade jurídica em torno do tema da tributação internacional parece encaminhar-se para o seu encerramento. Com efeito, na sessão de 17.08.2011 delineou-se no Supremo Tribunal Federal a maioria de cinco votos a quatro em prol da constitucionalidade da exação nos termos postos naquele texto normativo, ao menos com respeito à tributação das controladas no exterior (ADI 2.588).
O voto faltante, do Ministro Joaquim Barbosa, poderá convalidar tal maioria, possibilitando o reconhecimento de constitucionalidade com efeitos vinculantes, visto que terá sido atendida a regra constitucional da reserva de Plenário (art. 97 da Constituição da República). Na hipótese inversa, de o Ministro vir a manifestar-se pela inconstitucionalidade do texto legal, este manterá sua eficácia calcado na presunção de constitucionalidade das leis em geral, sem que à decisão seja dado efeito vinculante, devendo a matéria ser de novo examinada pela Corte Suprema em RE ou, quem sabe, em nova ADI.
Interessante notar que, tanto no que concerne à situação das coligadas no exterior, quanto na questão relacionada à tributação dos lucros acumulados por controladas e coligadas em 31.12.2001 (art. 74, parágrafo único, da MP nº 2.15835/01), o quadro apresenta-se invertido: atualmente há cinco votos pela inconstitucionalidade da exação e quatro pela constitucionalidade. Aqui, reversamente, o Ministro Joaquim poderá dar efeito vinculante à decisão da maioria, votando pela inconstitucionalidade, ou manter a eficácia do texto sem que à decisão se atribua efeito vinculante, no caso de proclamar sua constitucionalidade.
Para os efeitos deste estudo, adota-se, portanto, a premissa básica de que decorre da ADI 2.588 a plena eficácia da tributação das controladas (e, eventualmente das coligadas) no exterior quando da apuração de seus resultados em balanço.
Surge aí nova questão a ser definida, concernente à inexigibilidade da exação fiscal sobre lucros no exterior nas hipóteses em que as controladas (e coligadas, se for o caso) encontrarem-se domiciliadas em países com os quais o Brasil tenha celebrado tratado para evitar a dupla tributação da renda e prevenir a evasão fiscal.
Na sessão de 31.08.2011, ao dar início ao julgamento do RE 460.320/PR, o Ministro Gilmar Mendes proferiu voto lapidar, em que, após traçar toda a evolução jurisprudencial no âmbito do Supremo Tribunal Federal em torno do tema da prevalência dos tratados sobre a lei interna, acaba por afirmar a natureza supralegal aos tratados conferida pela Constituição da República, de que resulta a plena recepção por esta do art. 98 do CTN, na esteira, aliás, do que já decidira a Corte Suprema (RE 229.096-0/RS). A despeito de tratar-se de voto inaugural, entendemo-lo ilustrado o bastante para embasar neste trabalho a premissa de que o direito brasileiro não permite o treaty override.
De resto, na esfera de atuação das autoridades fiscais não se vem contestando a plena aplicação dos tratados. O que têm feito os auditores fiscais, quando se deparam com a situação de controladas e coligadas domiciliadas em países com os quais o Brasil tenha celebrado acordo para evitar a dupla tributação da renda, é aplicar a regra de seu art. 10 (dividendos) ao invés da contida no art. 7º (lucros das empresas).
A diferença da aplicação de um ou outro dispositivo é, no caso, determinante para o deslinde da questão.
É que o art. 7º dos tratados prevê a competência exclusiva do país de domicílio da controlada ou coligada para tributar seus lucros, ressalvada a hipótese de a controlada ou coligada possuir estabelecimento permanente no país de origem do investidor.[1]
Já o art. 10 admite a competência concorrente de ambos os países para a tributação dos dividendos.[2]
A este respeito, há manifestação da jurisprudência do antigo Conselho de Contribuintes no sentido de que sob a égide da Lei nº 9.532/97 a regra do tratado a ser aplicada seria a que trata da incidência sobre dividendos (art. 10) e não sobre lucros empresariais (art. 7º). Neste sentido o Acórdão 107-07.532 (Marisa), de 18.02.2004, proferido pela 7ª Câmara do 1º CC, Rel. Conselheiro Octávio Campos Fischer, que reconhece, todavia, que, anteriormente à lei referida (sob a égide da Lei nº 9.249/95), não haveria como cogitar da tributação sobre dividendos.
Posteriormente, já sob o regime do art. 74 da MP nº 2.158-35/01, a 8ª Câmara do 1º CC proclama a natureza da matéria imponível no Brasil em tema de controladas no exterior como sendo a de dividendo ficto, sujeito, portanto, às disposições do art. 10 do tratado, admitida, ipso facto, a tributação pelo Brasil no exercício legítimo da competência concorrente no que concerne à incidência tributária sobre dividendos. Trata-se do Acórdão 108-08.765 (Refratec), de 23.03.2006, Rel. Designado Conselheiro José Henrique Longo, vencida a Relatora Conselheira Karem Jureidini Dias, que restou assim ementado, no que interessa à presente discussão:
IRPJ – CONTROLADA NA ESPANHA – LUCROS A PARTIR DE 2001 – MP 2158-34/2001 – TRATADO INTERNACIONAL – O art. 74 da MP 2158-34 estabeleceu a presunção absoluta (ficção) de que o lucro auferido por controlada no exterior deve ser considerado distribuído à controladora no Brasil em 31 de dezembro de cada ano. O Tratado entre Brasil e Espanha não afasta a incidência de tributação por empresa sediada no Brasil relativamente ao lucro de empresa espanhola considerado distribuição.
Este acórdão encontra-se pendente de julgamento dos embargos de declaração, convertidos em diligência para verificar se, no caso específico da Espanha, cabe ou não a aplicação de norma isencional do tratado sobre dividendos (art. 23, § 4º).
A esta decisão, contrapõem-se os Acórdãos 101-95.802 e 101-97.070 (Eagle 1 e Eagle 2), respectivamente de 19.10.2006 e 17.12.2008, ambos da 1º Câmara do 1º CC e da Relatoria da Conselheira Sandra Maria Faroni, tendo prevalecido, no segundo, o voto do Conselheiro Valmir Sandri, redator designado para o acórdão. Em ambos os feitos, reconheceu-se expressamente que, a partir do art. 74 da MP 2.158-35/01 a regra do tratado a se aplicar é a do art. 7º, que defere ao país de domicílio da controlada e coligada no exterior competência exclusiva para alcançar os lucros empresariais. No segundo acórdão distinguiu-se a situação da controlada indireta para afastar a aplicação do tratado em relação aos lucros auferidos por controladas e coligadas domiciliadas em terceiros países, restando a ementa do segundo acórdão, no que a nós se aplica, com a seguinte dicção:
LUCROS AUFERIDOS POR INTERMÉDIO DE COLIGADAS E CONTROLADAS NO EXTERIOR – Na vigência das Leis 9.249/95 e Lei 9.532/97 o fato gerador era representado pelo pagamento ou crédito (conforme definido na IN 38/96 e na Lei nº 9.532/97), e o que se tributavam eram dividendos. A partir da MP 2.158-35/2001, a tributação independe de pagamento ou crédito (ainda que presumidos), passando a incidir sobre os lucros apurados, e não mais sobre dividendos.
LUCROS ORIUNDOS DE INVESTIMENTO NA ESPANHA – Nos termos da Convenção Destinada a Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Imposto sobre a Renda entre Brasil e a Espanha, promulgado pelo Decreto nº 76.975, de 1976, em se tratando de lucros apurados pela sociedade residente na Espanha e que não sejam atribuíveis a estabelecimento permanente situado no Brasil, não pode haver tributação no Brasil.
LUCROS AUFERIDOS NO EXTERIOR POR INTERMÉDIO DE CONTROLADAS INDIRETAS – Para fins de aplicação do art. 74 da MP nº 2.158-35, os lucros de controladas indiretas consideram-se auferidos diretamente pela investidora brasileira, e sua tributação no Brasil não se submete às regras do tratado internacional firmado com o país de residência da controlada direta.
A despeito da saudável evolução da jurisprudência administrativa em relação à matéria, inclusive no que tange ao afastamento das regras do tratado no caso de controladas indiretas, retrocedeu mais recentemente o atual CARF para a posição anteriormente prevalecente no Acórdão 108-008.765 (Refratec), voltando a sustentar que o art. 74 da MP nº 2.158-35/01 diz respeito a dividendo ficto.
É o caso do Acórdão 1101-00.365 (Camargo Corrêa), proferido pela 1ª Câmara da 1ª Turma Ordinária, em 10.11.2010, da Relatoria da Conselheira Edeli Pereira Bessa, que restou assim ementado:
CONVENÇÃO BRASIL-PORTUGAL PARA EVITAR DUPLA TRIBUTAÇÃO. PREMISSAS PARA ANÁLISE DO CONFLITO NORMATIVO. O art. 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 estabelece tributação sobre dividendos percebidos por beneficiários situados no país mediante ficção de disponibilização dos resultados auferidos por intermédio de coligadas ou controladas no exterior. COMPATIBILIDADE COM O TRATADO INTERNACIONAL. O acordo firmado entre Brasil e Portugal autoriza a tributação de dividendos no Estado onde se situa o beneficiário dos rendimentos (…).
Tal assertiva conflita frontalmente com os votos já proferidos pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que não convalidaram a tese dos dividendos fictos, declarando, ao revés, a ocorrência para o investidor da aquisição de disponibilidade jurídica da renda pela via da equivalência patrimonial e convalidando a adição aos lucros líquidos apurados pelo investidor dos resultados auferidos por controladas (e, se for o caso, por coligadas) no exterior.
Houve, por conseguinte, por parte da Corte Suprema, a declaração insofismável de que o objeto da tributação inscrita no art. 74 da MP 2.158-35/01 são os lucros auferidos por controladas no exterior e não dividendos, fictos ou efetivos. O Ministro Cezar Peluso, no voto proferido na sessão de 17.08.2011, cuidou, inclusive, de esclarecer que o que se tributa não é a equivalência patrimonial em si, mas os lucros nela contidos.
Sendo esta decisão originária do Plenário do Supremo Tribunal Federal, entendemos que seria de bom alvitre que os juízes no âmbito administrativo, assim como os próprios Procuradores da Fazenda Nacional a ela se conformassem, para que o julgamento da ADI 2.588 venha efetivamente a encerrar uma década de perplexidade jurídica e não tornar-se o marco inicial de uma nova década de polêmica agora repetitiva.
[1] Cf. art. 7º, § 1º do Modelo OCDE: “Os lucros de uma empresa de um dos Estados Contratantes só serão tributáveis nesse Estado Contratante, a menos que a empresa realize negócios, no outro Estado Contratante, por meio de um estabelecimento permanente ali situado”. “The profits of an enterprise of a Contracting States shall be taxable only in that State unless the enterprise carries on business in the other Contracting State through a permanent establishment situated therein”.
[2] Cf. art. 10, §§ 1º e 2º, do Modelo OCDE: “1. Os dividendos pagos por uma companhia residente em um dos Estados Contratantes para um residente do outro Estado Contratante pode ser tributado neste outro Estado. 2. Porém, tais dividendos também podem ser tributados no Estado Contratante do qual a companhia pagamento os dividendos é residente e de acordo com as leis desse Estado (…)”. “1. Dividends paid by a company which is a resident of a Contracting State to a resident of the other Contracting State may be taxed in that other State. 2. However, such dividends may also be taxed in the Contracting State of which the company paying the dividends is a resident and according to the laws of that State (…)“.