A desistência do processo administrativo como formalidade do parcelamento da Lei Federal nº 11.941/2009
por Rodrigo Maito da Silveira
por Thiago Ferreira Catunda
Com o objetivo de elaborar um trabalho objetivo e pragmático, comentando um problema enfrentado pelas empresas, criamos a seguinte situação ficta:
A empresa XPTO Ltda. aderiu ao parcelamento instituído pela Lei Federal 11.941/2009, para parcelar em 180 meses o débito que vinha discutindo na esfera administrativa, o qual estava com a exigibilidade suspensa, consoante o artigo 151, III, da Lei Federal nº 5.172/1966[1] (Código Tributário Nacional – CTN).
A empresa vem pagando todas as parcelas do seu parcelamento e cumpriu as formalidades necessárias para parcelar os seus débitos, afora uma delas, qual seja, o protocolo da desistência de recurso previsto no artigo 13, § 3º, da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009, no processo administrativo cujo objeto era o débito incluído no parcelamento.
Este é o cenário que propomos comentar.
A Lei Federal nº 11.941/2009 instituiu diversas modalidades de parcelamento de tributos federais, inclusive de débitos tributários com exigibilidade suspensa em razão de recurso administrativo apresentado pelo contribuinte (artigo 151, III, do CTN).
Para essa situação, a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009 determinou que fosse protocolada petição direcionada ao Delegado da Receita Federal ou Presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), para formalizar a desistência do recurso administrativo outrora interposto pelo contribuinte.
Em 2011 foi publicada a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 2, que regulamentou os procedimentos a serem realizados pelo contribuinte para consolidar os débitos por ele incluídos no parcelamento. Tal Portaria também dispôs sobre os débitos com a exigibilidade suspensa e, fazendo referência ao artigo 13, § 3º, da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6/2009, facultou à autoridade fiscal dispensar a exigência do protocolo da desistência de defesa ou recurso administrativo, nos casos em que a desistência fosse integral, ou seja, na hipótese em que a totalidade do débito discutido em determinado processo administrativo tivesse sido incluído no parcelamento.
Vale dizer que, embora essa faculdade conferida à autoridade administrativa esteja vinculada à inclusão integral de débito oriundo de processo administrativo no parcelamento instituído pela Lei Federal nº 11.941/2009, é possível sustentar, como veremos adiante, que também nos casos de inclusão parcial de débitos é prescindível a formalização de desistência nos processos administrativos correspondentes.
As referidas Portarias dispuseram sobre esse requisito formal de desistência porque o fato jurídico da confissão do débito, que consagra a falta de interesse do contribuinte em prosseguir com a discussão administrativa em relação aos débitos por ele indicados, foi constituído, de forma irretratável, no momento em que foi feita a opção pelo parcelamento do débito.
É exatamente o que prescreve a Lei Federal nº 11.941/2009, que determina em seu artigo 5º que a opção por qualquer dos parcelamentos por ela instituídos implica confissão irrevogável e irretratável dos débitos indicados pelo contribuinte, nos termos dos artigos 348, 353 e 354 da Lei Federal nº 5.869/1973[2] (Código de Processo Civil – CPC). Confira-se o teor do artigo 5º da Lei Federal nº 11.941/2009:
Art. 5º A opção pelos parcelamentos de que trata esta Lei importa confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo na condição de contribuinte ou responsável e por ele indicados para compor os referidos parcelamentos, configura confissão extrajudicial nos termos dos arts. 348, 353 e 354 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, e condiciona o sujeito passivo à aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas nesta Lei.
Tal Lei Federal nº 11.941/2009 ainda estabelece que o sujeito passivo que possua ação judicial em curso na qual requer o restabelecimento de sua opção ou reinclusão em outros parcelamentos deve desistir da respectiva ação judicial, renunciando ao direito sobre o qual a ação está pautada, caso pretenda incluir o respectivo saldo remanescente em qualquer dos parcelamentos instituídos pela Lei Federal nº 11.941/2009. Entretanto, ela não faz qualquer menção aos tributos com a exigibilidade suspensa, objeto de processo administrativo, o que confirma que o protocolo da desistência do recurso administrativo, estabelecido por meio do instrumento normativo Portaria é requisito formal de cunho declaratório, que nada constitui, apenas declara a situação pré-existente da confissão do débito pelo contribuinte quando incluiu o débito objeto do processo administrativo no parcelamento.
Diante do que foi dito, é possível estruturar o seguinte raciocínio:
(i)A opção por qualquer dos parcelamentos instituídos pela Lei Federal nº 11.941/2009 implica confissão irrevogável e irretratável dos débitos indicados pelo contribuinte; e
(ii)A constituição do fato jurídico da confissão do débito, que consagra a falta de interesse (leia-se desistência) no respectivo processo administrativo ocorre quando o contribuinte indica o débito no parcelamento e não quando formaliza tal ocorrência nos autos desse processo. A previsão para a autoridade administrativa dispensar tal formalidade nos casos em que o débito for incluído integralmente no parcelamento (prevista no artigo 13, § 3º da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 2/2011) confirma esse raciocínio, pois, se não fosse ato formal, mas constitutivo, não poderia ser dispensável, pois seria condição para manutenção no parcelamento.
O objetivo é demonstrar que a falta do protocolo do pedido de desistência no processo administrativo referente a débito incluído pelo contribuinte no parcelamento instituído pela Lei Federal nº 11.941/2009 não é hipótese de exclusão do parcelamento, tenha sido o respectivo débito fiscal incluído integral ou parcialmente nesse parcelamento.
A primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial nº 1.143.216-RS submetido à sistemática dos recursos repetitivos, no qual essa matéria foi examinada (ainda que em situação análoga, pois trata do parcelamento instituído pela Lei Federal nº 10.684/2003 – Parcelamento Especial – PAES), decidiu o seguinte:
(i)A exclusão do contribuinte do programa de parcelamento em razão da extemporaneidade do cumprimento de requisito formal da desistência de impugnação administrativa é ilegítima, pois o adimplemento das prestações mensais por mais de quatro anos, sem qualquer oposição do Fisco, implica deferimento tácito da adesão ao parcelamento; e
(ii)O não cumprimento da desistência de impugnação administrativa não é hipótese legal de exclusão do parcelamento.
Confira-se a ementa do referido acórdão:
(….) PAES. PARCELAMENTO ESPECIAL. DESISTÊNCIA INTEMPESTIVA DA IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA X PAGAMENTO TEMPESTIVO DAS PRESTAÇÕES MENSAIS ESTABELECIDAS POR MAIS DE QUATRO ANOS SEM OPOSIÇÃO DO FISCO. DEFERIMENTO TÁCITO DO PEDIDO DE ADESÃO. EXCLUSÃO DO CONTRIBUINTE. IMPOSSIBILIDADE. PROIBIÇÃO DO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM).
1. A exclusão do contribuinte do programa de parcelamento (PAES), em virtude da extemporaneidade do cumprimento do requisito formal da desistência de impugnação administrativa, afigura-se ilegítima na hipótese em que tácito o deferimento da adesão (à luz do artigo 11, § 4º, da Lei 10.522⁄2002, c⁄c o artigo 4º, III, da Lei 10.684⁄2003) e adimplidas as prestações mensais estabelecidas por mais de quatro anos e sem qualquer oposição do Fisco.
(…)
11. Destarte, a existência de interesse do próprio Estado no parcelamento fiscal (conteúdo teleológico da aludida causa suspensiva de exigibilidade do crédito tributário) acrescida da boa-fé do contribuinte que, malgrado a intempestividade da desistência da impugnação administrativa, efetuou, oportunamente, o pagamento de todas as prestações mensais estabelecidas, por mais de quatro anos (de 28.08.2003 a 31.10.2007), sem qualquer oposição do Fisco, caracteriza comportamento contraditório perpetrado pela Fazenda Pública, o que conspira contra o princípio da razoabilidade, máxime em virtude da ausência de prejuízo aos cofres públicos.
12. Deveras, o princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes, sendo certo que o ordenamento jurídico prevê, implicitamente, deveres de conduta a serem obrigatoriamente observados por ambas as partes da relação obrigacional, os quais se traduzem na ordem genérica de cooperação, proteção e informação mútuos, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre ambos.
13. Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara (excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra factum proprium.
14. Outrossim, a falta de desistência do recurso administrativo, conquanto possa impedir o deferimento do programa de parcelamento, acaso ultrapassada a aludida fase, não serve para motivar a exclusão do parcelamento, por não se enquadrar nas hipóteses previstas nos artigos 7º e 8º da Lei 10.684⁄2003 (inadimplência por três meses consecutivos ou seis alternados; e não informação, pela pessoa jurídica beneficiada pela redução do valor da prestação mínima mensal por manter parcelamentos de débitos tributários e previdenciários, da liquidação, rescisão ou extinção de um dos parcelamentos) (Precedentes do STJ: REsp 958.585⁄PR, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 14.08.2007, DJ 17.09.2007; e REsp 1.038.724⁄RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 17.02.2009, DJe 25.03.2009).
15. Conseqüentemente, revela-se escorreito o acórdão regional que determinou que a autoridade coatora mantivesse o impetrante no PAES e considerou suspensa a exigibilidade do crédito tributário objeto do parcelamento.
16. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08⁄2008. (grifos originais)
Não obstante o STJ ter examinado a (desnecessidade de) formalização da desistência de processo administrativo para inclusão de débitos no PAES, entendemos que o raciocínio desenvolvido nesse precedente pode servir de orientação jurisprudencial para as situações análogas como aquela ora analisada, ainda mais quando, ao contrário do que ocorre na lei instituidora do PAES, não há na Lei Federal nº 11.941/2009 a obrigação de desistência de processo administrativo cujo débito tenha sido incluído no parcelamento por ela instituído, seja integral, seja parcialmente.
[1] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (….)
III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;
[2] Art. 348. Há confissão, quando a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário. A confissão é judicial ou extrajudicial. (….)
Art. 353. A confissão extrajudicial, feita por escrito à parte ou a quem a represente, tem a mesma eficácia probatória da judicial; feita a terceiro, ou contida em testamento, será livremente apreciada pelo juiz.
Parágrafo único. Todavia, quando feita verbalmente, só terá eficácia nos casos em que a lei não exija prova literal.
Art. 354. A confissão é, de regra, indivisível, não podendo a parte, que a quiser invocar como prova, aceitá-la no tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável. Cindir-se-á, todavia, quando o confitente lhe aduzir fatos novos, suscetíveis de constituir fundamento de defesa de direito material ou de reconvenção.