A necessidade de expressa renúncia ao direito para adesão aos programas de parcelamento.

por Renata Vilella
Advogada do escritório Amaral & Araujo Advogados Associados

 

Questão sempre trazida à discussão nos meios jurídicos é a necessidade de renúncia ao direito de discutir o débito para adesão aos programas de parcelamento constantemente/periodicamente oferecidos pelo fisco (seja Federal, Estadual ou Municipal).

Deveras, existem aqueles que defendem que esta renúncia, aliada ao pedido de parcelamento com a confissão de dívida é irretratável, analisando a questão sob o prisma civilista.

Os que adotam esta orientação arguem também o próprio conceito de renúncia, definido por CAIO MÁRIO como “a abdicação que o titular faz do seu direito, sem transferi-lo a quem quer que seja. É o abandono voluntário do direito”.

Porém diante da atual ordem constitucional o entendimento se mostra equivocado e não resiste a uma análise sob a ótica da primazia da Constituição.

Cabe pontuar que diferentemente da esfera civilista, as obrigações tributárias não decorrem da vontade das partes, mas da lei.

Doutro giro, a Constituição Federal preconiza em seu artigo 5º, inciso XXXV que “nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída de apreciação do Poder Judiciário”.

Pois bem, feitas estas considerações passamos a analisar alguns conceitos de obrigação na esfera civil e tributária para assinalar as diferenças e melhor conduzir a presente explanação.

Da obrigação civil – Para o Professor CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “obrigação é um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável”.

WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO conceitua obrigação da seguinte forma: “obrigação é uma relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”.

Da obrigação tributária – O CTN ao tratar da obrigação tributária, em seu artigo 113, define a obrigação tributária, nos seguintes termos.

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória:
Parágrafo 1º – A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
Parágrafo 2º – A obrigação acessória decorre da legislação tributária e têm por objeto as prestações positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
Parágrafo 3º – A obrigação acessória, pelo simples fato de sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

Verifica-se no “caput” do artigo que o CTN estabelece duas modalidades de obrigação, dividindo-as em principal ou acessória.

Nesta senda, enquanto a obrigação principal têm como objeto o pagamento de um tributo ou penalidade pecuniária, a obrigação acessória objetiva a realização obrigações de fazer ou não fazer, conforme descrito no parágrafo segundo. Explanando com maior clareza e abrangência o assunto ora tratado, LUIZ EMYGDIO tece as seguintes considerações:

“Vimos anteriormente, que obrigação é o poder jurídico pelo qual uma pessoa (sujeito ativo), com base na lei ou no contrato (causa), pode exigir de outra, ou de um grupo de pessoas (sujeito passivo), o cumprimento de uma prestação possível, lícita, determinável e possuindo expressão econômica (objeto). Partindo desse conceito genérico de obrigação, abrangendo, portanto, tanto a obrigação tributária principal quanto a acessória, podemos dizer que a obrigação tributária é o vínculo jurídico pelo qual o Estado com base na legislação tributária, pode exigir do sujeito passivo uma prestação tributária positiva ou negativa”.

Clarificadas as diferenças entre a obrigação na esfera civil e tributária, passa-se a abordar como exemplo condutor de raciocínio a prescrição no direito tributário para demonstrar em primeira análise porque a renúncia absoluta a direito obtida no momento da adesão ao parcelamento não é irrevogável.

Prescrição no Direito Tributário – Matéria de ordem pública, a prescrição no Direito Tributário possui efeito diferente da prescrição civil. Como explica Luiz Emygdio:

“ A prescrição, no direito tributário, atinge não só o direito de ação da fazenda Pública, mas também o próprio crédito tributário porque é causa de sua extinção (CTN, art. 156 V). Ademais, a prescrição provoca também a extinção da obrigação tributária, em razão do §1º do art. 113 do CTN rezar que a obrigação tributária extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.”

Em outro momento o mestre assim trata da decadência:

“Assim, a decadência ocorre quando o fisco não constitui, no prazo legal, o crédito tributário pelo lançamento, implicando, portanto, na extinção deste direito e, em conseqüência, impedindo que o Estado exerça seu poder de tributar. Na realidade, legislador contempla uma hipótese curiosa porque diz que a decadência extingue o crédito tributário (CTN, art.156, V), que, na verdade, não nasceu, já que não ocorreu o lançamento.

Desta forma, parece lógico que, considerando a premissa norteadora deste artigo, resta superado de que na hipótese ocorreu o lançamento.

Sendo assim, restaria somente a hipótese da prescrição e destarte, forçoso concluir que se um contribuinte confessar crédito tributário prescrito, esta é matéria de ordem pública apta a autorizar a revisão da confissão, não obstante qualquer renúncia do particular.

Inclusive, caso fosse realizada por um contribuinte a confissão de crédito tributário extinto, inexigível, tal fato autorizaria, inclusive pleito de ressarcimento dos valores pagos. 

Os efeitos da confissão e da renúncia no Direito Civil – Os que defendem a validade da renúncia em questão baseiam-se no princípio arcaico dopacta sunt servanda. Porém, mesmo os aficionados desta linha de pensamento devem reconhecer que tal premissa principiológica foi bastante relativizada com o advento da Constituição de 88 e do Novo Código Civil.

Da coercitividade como vício na vontade – Oportuno destacar que as confissões e renúncias obtidas no momento de adesão ao parcelamento, correntemente servem a obstar um processo de cobrança (administrativo/judicial), com níveis diferentes de sanções previstas.

Caso o tributo exigido se encontre em fase de cobrança judicial (execução), com as medidas expropriatórias inerentes a este procedimento e que o contribuinte esteja sofrendo v.g. penhoras livres (on line), constrições sobre bens e meios de produção e anotações em registros de imóveis é relativamente esperado que este contribuinte se sinta compelido a aceitar uma condição de parcelamento oferecida pelo fisco, somente a fim de diminuir os efeitos da privação em seu patrimônio.

Em outras palavras, é natural que o empresário que tenha sofrido bloqueio (por exemplo) em sua conta corrente de determinado montante (necessário para continuidade de sua atividade) se sinta premido pelas circunstâncias a realizar o parcelamento na condição oferecida pelo Fisco com o objetivo único de ver seus recursos desbloqueados o quanto antes e assim poder continuar suas atividades.

Por outro lado, podemos considerar também que, em virtude da boa-fé do contribuinte, este não considera inicialmente (muito menos no momento “redentor” da realização do parcelamento) que o Estado está lhe exigindo montante indevido ou prescrito, por exemplo.

Porém, vamos considerar a hipótese deste contribuinte descobrir que, no meio do montante confessado existe multa em valor significativo e acrescido de juros; também que esta multa é indevida, abusiva (por não ter amparo legal) e passível de anulação no Judiciário; que confessou ser devedor de exação há muito prescrita; que confessou ser devedor de tributo do qual jamais fora contribuinte; que confessou tributo pago (de posse do comprovante) ou que não praticou o fato gerador da exigência confessada. Lembrando que esse contribuinte renunciou a direito/confessou dívida inexistente apenas para se livrar da privação em seu patrimônio que está a lhe fazer falta na consecução de suas atividades?

Tais considerações são feitas porque, quando começa o procedimento judicial, muitas vezes não se possui o conteúdo do procedimento administrativo que ensejou a exigência, com seus fundamentos e razões, com o detalhamento dos dispositivos invocados pela fiscalização e dos meandros do lançamento.

Assim, é possível que o sujeito passivo que não tenha assessoria tributária especializada (o que é comum, tendo em vista o custo elevado na contratação destes profissionais), sofra de relativa desorganização administrativa e que saiba somente “que está sendo cobrado por alguma coisa que deixou de pagar” e por derradeiro, forçado pelas necessidades sempre presentes na vida dos empresários/contribuintes (como as mencionadas anteriormente), opte, para resolver seu problema imediatamente, por realizar o parcelamento sem discutir judicialmente a exigência.

Pronto, feita está a renúncia/confissão referente à exigência que viola o princípio da verdade material; que não possui amparo legal (que lhe dá validade) ou inexigível (pela prescrição, por exemplo).

Feitas estas considerações e caminhando para uma conclusão, resta ainda abordar um último aspecto relevante a ser considerado.

Do direito de petição – Vejamos a seguinte hipótese: a de existir no crédito tributário confessado com renúncia ao direito de discutir o débito, vícios ou nulidades que autorizam o exercício do direito de petição ao Judiciário.

Diante deste quadro (vícios na confissão efetuada no momento de parcelamento) em nosso entender, assegurado está o acesso ao Judiciário, sob pena de, a se entender de maneira diversa, apresentar óbice ao direito de petição, que possui abrigo constitucional.[1]

Posicionamento na Jurisprudência – Diante de todo o exposto e da leitura das ementas a seguir transcritas temos que as manifestações de vontade abordadas nas presentes linhas (renúncia/confissão) não são irrevogáveis quando a exação não encontra amparo legal:

”TRIBUTÁRIO. 1. CONFISSÃO DE DÉBITO PARCELAMENTO ADMINISTRATIVO. DISCUSSÃO JUDICIAL. A confissão  de débito, feita como condição do respectivo parcelamento administrativo, não impede sua discussão, porque a obrigação tributária resulta de lei, nada valendo o crédito tributário que dela destoe…” (TRF4, 1ª Turma, MS 92.04.34874-7, DJU em 17.11.93)
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO.  EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO DECRETADA DE OFÍCIO. ALEGAÇÃO DE RENÚNCIA EM VIRTUDE DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. IMPOSSIBILIDADE. APELAÇÃO IMPROVIDA.
1. Uma vez consumada a prescrição e, consequentemente, extinto o crédito tributário, posterior pedido de parcelamento não implica na renúncia prevista no art. 191 do CC, pois a prescrição em matéria tributária é regulada pelo art. 156, V, do CTN.
2. Precedentes do STJ e desta Corte Regional: RESP 1161958, 200902050140, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ – SEGUNDA TURMA, DJE: 1.9.2010; AG111468/SE, DESEMBARGADOR FEDERAL MANOEL ERHARDT, Primeira Turma, JULGAMENTO: 15/09/2011, PUBLICAÇÃO: DJE 22.9.2011 – Pág. 85.
3. Apelação improvida.
ACÓRDÃO – AC540350/SE (24/05/2012) Origem: Tribunal Regional Federal – 5ª Região –  Classe: Apelação Civel – AC540350/SE – Número do Processo: 200085000039164 – Data do Julgamento: 17/05/2012 – Órgão Julgador: Primeira Turma
TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PARCELAMENTO. EXCLUSÃO. CONSUMAÇÃO DO LAPSO PRESCRICIONAL. RENÚNCIA À PRESCRIÇÃO TRIBUTÁRIA. INAPLICABILIDADE DO ART. 191 DO CC.
1.    As exclusões da devedora dos parcelamentos REFIS e PAES se deram em 27/08/03 e 10/05/05, respectivamente (CDA’s 51.4.10.000097-77, 51.6.10.000481-22, 51.6.10.000483-03 e 51.4.10.000105-11). Porém, a presente execução fiscal foi proposta em 16/07/10, portanto após o prazo quinquenal de cinco anos contado por inteiro a partir das datas das rescisões.
2.      A prescrição no direito tributário é regulada pelo CTN, que prevê a extinção do crédito tributário pela consumação do lapso prescricional (art. 156, V, do CTN). Tendo a obrigação tributária origem e extinção ex lege, a confissão de débito realizada pelo contribuinte seria, apenas, causa de interrupção, (art. 174, parágrafo único, IV, do CTN), se o lapso prescricional estiver em curso por ocasião do reconhecimento da dívida e não em renúncia à prescrição (art. 191 do CC).
3.  Os outros créditos tributários (CDA’s 51.4.05.001243-80 e 51.4.09.000607-20) foram constituídos por declaração da contribuinte em 31/05/04 e 31/05/05, também alcançados pela prescrição
4.    Apelação e remessa oficial improvidas.
ACÓRDÃO – APELREEX16450/SE (19/04/2012) – Origem: Tribunal Regional Federal – 5ª Região – Classe: Apelação / Reexame Necessário – APELREEX16450/SE – Número do Processo: 00034209620104058500 –  Data do Julgamento: 12/04/2012 – Órgão Julgador: Primeira Turma
PROCESSUAL CIVIL – TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – PARCELAMENTO ACORDADO – ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 174 DO CTN, E 191 DO CC – INEXISTÊNCIA – PRESCRIÇÃO CONSUMADA.
1. O preenchimento de termo de confissão de dívida para fins de parcelamento do débito não tem o condão de restabelecer o direito do Fisco de exigir o crédito extinto pela prescrição.
2. Precedentes: AgRg no REsp 1087838/RS, Rel.
Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 23.4.2009, DJe 19.5.2009; REsp 812669/RS, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 17.8.2006, DJ 18.9.2006.
Agravo regimental improvido.
AgRg no REsp 1116753 / 2009/0007075-1 – Relator(a) Ministro HUMBERTO MARTINS (1130) – Órgão Julgador – T2 – SEGUNDA TURMA – Data do Julgamento 06/04/2010.

 Conclusão

Destarte, conclui-se que existem limites à renúncia de direitos em matéria tributária, tendo em vista a diferença existente entre a interpretação civilista e tributária do instituto da obrigação e seus reflexos. Isto porque é equivocado analisar a questão considerando a obrigação tributária como sujeita à vontade das partes, porquanto a obrigação tributária decorre de lei.

Tanto é assim, que o contribuinte que tenha recolhido tributo declarado inconstitucional, com lei que o instituiu despida de vigência e eficácia e segundo a doutrina que preconiza the inconstitucional statute is not law at all, terá direito à restituição.

Portanto, conclui-se que a renúncia, enquanto manifestação de vontade, em se tratando de matéria tributária não subsiste sem lei que forneça o necessário suporte à exigência fiscal.

Logo, havendo conflito entre a força da manifestação de vontade (renúncia de direitos) para adesão a um programa de parcelamento, quando a obrigação tributária confessada apresente vícios que autorizem a revisão judicial, prevalece a legalidade, posto que é pilar de sustentação da obrigação tributária.

Bibliografia

  • PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, v. I.
  • PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 10. V. 2.
  • MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva: 1997, p. 08. V. 4.
  • ROSA JR., Luiz Emydio F. da. Manual de Direito Tributário e Direito Financeiro: Jurisprudência Atualizada. 14ª ed. atual. e aum., Rio de Janeiro – São Paulo, Ed. Renovar, 2000.


[1] Artigo 5º (…) XXXIV – são a todos assegurados, independentemente de pagamento de taxas:

a)                  O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

 

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